terça-feira, 17 de junho de 2014

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA?

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? - 5

Fernando Cabrita

Muchas Veces Me Sucede Olvidar Quien Soy – LUIS ENE

Luis Ene, nome literário do escritor Luis Nogueira, tem absoluta razão quando epigrafa o seu blog Ene Coisas com a frase “Nada é simples quando se trata de palavras. Quando se trata de palavras até a palavra simples é complicada.” É que, na verdade, o ofício do escritor -- e mormente o do poeta -- faz-se de palavras. Vaza-se em palavras. Inicia-se e conclui-se por palavras. Pela Palavra.
O poeta existe pela Palavra, cumprindo-a, trabalhando-a, exercitando-a; e a Palavra dá-nos a existência do poeta, afirmando-o através dela. Mesmo as poéticas de ruptura ou de descontinuidade, mesmo o experimentalismo, mesmo os movimentos dadaístas, não prescindem dessa matéria-prima. Prima, porque primeira e primeva; portanto inicial e iniciática.
Toda a poesia é uma música de palavras; e uma teia de imagética tecida de verbo, diacrónica e sincronicamente. A lição encontra-se nos textos saussurianos, em qualquer manual estruturalista, em Barthes, na obra As Palavras E As Coisas de Michel Foucault (especialmente no capítulo IV – A Escrita das Coisas), ou nos estudos de Pessoa sobre a Nova Poesia Portuguesa; mas está condensada de modo brilhante, sem mácula alguma e acima de toda a dúvida, no livro de poemas Lex Icon, de Salette Tavares: Dêem-me palavras que eu descobrirei as coisa/ dêem-me coisas que eu descobrirei as palavras/ Entre as palavras e a coisa o intervalo é nenhum/ palavra ou coisa a eloquência pertence-lhes: à palavra porque diz a coisa/ à coisa porque diz a palavra.
A palavra, assim exercitada, desenha o mundo. Torna-se matéria. Palpita nela o significado, a realidade, a identidade iconográfica das coisas. Mas se, ademais, é no ofício poético que ela se exercita, ela mais do que desenhar, redesenha a realidade, dá-nos o sentido do oculto, crias novas dimensões de si mesma e do que significa, transmuda-se em outra sendo a mesma. Vive -- e cria vida.
Resumiu bem este sentido poético do verbo, na sua relação com o mundo, Cooleridge, quando numa carta a William Godwin em Setembro de 1800 dizia: "Gostaria que escrevesses um livro sobre o poder das palavras. Será o pensamento impossível sem sinais arbitrários? E até que ponto a palavra “arbitrário” é adequada? Não são as palavras, etc, partes e germinações da planta? E qual é a lei do seu crescimento? Eu de certo modo tentaria destruir a velha antítese de Palavras e Coisas, elevando as Palavras a Coisas e, até mais do que isso, a coisas vivas.”
E são essas palavras feitas coisas vivas que Luis Ene nos dá no seu Muchas Veces Me Sucede Olvidar Quien Soy. O título vai em castelhano, porque o livro, sendo bilingue, é aliás o primeiro livro da Colecção Palavra Ibérica, que abriu assim com uma obra excelentíssima. Luis Ene é o primeiro autor da palavra Ibérica – e ainda bem. Leia-se o texto nº 6 : Um homem foi ao fundo uma vez, outra, e outra ainda, mas não morreu. A questão que lhes quero colocar, caros leitores, não é quantas vezes mais pode ele ir ao fundo e ficar vivo, mas sim quanto tempo poderá ele ainda estar vivo sem ir de novo ao fundo.
Simples, conciso, brilhante. Como se fora todo um propósito. De vida, de escrita, de sabedoria intrínseca numa e em outra. E vejam-se também, sob o mesmo prisma de anunciação, os textos 15 e 18: 15- Um livro que se fecha é um livro que se abre. Um amor que acaba é um amor que começa. Na leitura e no amor não há intervalos. Se ainda não começou de novo é porque ainda não acabou de vez.
18-Um homem encontrou um livro estendido num banco de jardim e perguntou-lhe: Quem te perdeu? Ao que o livro respondeu: Ninguém me perdeu, na verdade fui aqui deixado para que alguém me encontrasse e me levasse consigo. Mas ainda o livro mal acabara de falar e já o homem abalava sozinho sem dizer sequer uma palavra. [A moral desta história é dupla: há livros que não falam ao coração dos homens; há homens que são surdos à voz dos livros].
Não deixa de nos estremecer a profundidade do pensamento que assim se expõe. À primeira vista, parece que o intertexto se compõe de material pobre da língua, um conjunto reduzido de palavras banais, num vocabulário corrente e quotidiano. Mas quanta imensidade nesta banalidade aparente! Quanta elevação, sem qualquer deslize de pretensiosismo! O teclado aparentemente restrito e directo da expressão, dá-nos contudo um universo de interrogações, um mundo de imagens que alfim reconhecemos nítidas, sólidas, intemporais.
As palavras de Luis Ene podem ser as mais triviais; mas a sua escrita é de um trivial magnífico, se alguma necessidade houvesse de encontrar uma expressão que a definisse. Ele sabe-o; e é essa sabedoria que faz da sua poesia, que se apresenta sob as veste de prosa, uma grande criação poética. E sabe-o quando diz, como referi acima, que nada é simples quando se trata de palavras. Quando se trata de palavras até a palavra simples é complicada. Pois. As palavras simples são complicadas quando as tornamos coisas vivas. E Luis serve-se ainda da melhor ironia, para nos dar esse sentido estranho das palavras vivendo por si mesmas.
Dos seus textos rescende essa saborosa corrente cáustica e crítica que atravessa a literatura portuguesa desde os autores trovadorescos. Veja-se o texto 13: A minha mulher é excepcionalmente quente, e eu gosto de acender os cigarros no seu corpo, declarou ontem o homem detido por maus-tratos conjugais. Ou, no mesmo registo, o texto imediatamente anterior: -12 Um homem declarou o seu amor a uma mulher. Esta, sabendo-o muito violento, disse-lhe que sim, mas com uma condição: deveria ajoelhar-se à sua frente, de cabeça baixa e ficar imóvel por alguns minutos. Contente, ele assim fez, e muito pouco tempo passou até que ela lhe desferiu uma forte pancada na base do crânio que o matou de instantâneo. [A moral desta história é bastante clara: muitas vezes um sim condicional em nada se distingue de um não peremptório.]
Texto curto, simples, aparentemente quase simplista. Mas eis o conjunto, a conclusão; e tudo se revela grandioso, magnifico, excelso. Luís é um exímio cultor da palavra no seu uso minimalista – e assim a engrandece.
Com poucas palavras, e das mais correntes e banais; uma dose certa de ironia fina; e um uso contido da linguagem, por vezes a roçar o silêncio, constrói filosofias inteiras. Interroga-se e interroga-nos. Dá-nos o sentido do ridículo de algumas existências, o cómico-trágico de condutas e comportamentos. Convoca-nos. Surpreende-nos. Interpela-nos. A sua coesão estilística é soberba. Sente-se ali a visão literária dos imagistas ingleses do início do passado século: o horror da retórica, do lugar-comum, da declamação oratorial, do barroco quantas vezes pretensioso. Estão ali aqueles versos joviais, secos e sofisticados que Hulme previa. Está ali o ensinamento de Pound: Não deve haver lugares comuns, frases feitas, estilo jornalístico estereotipado. A única forma de fugir a isto é pela precisão, resultado da concentração da atenção sobre o que se está escrevendo….objectividade, e ainda objectividade e expressão (…)
Desta forma de encarar a poesia e de a exercitar, resulta que a forma final é a do texto em prosa. Mas prosa que não admite os vícios que João de Deus, em carta de 1898 a Alfredo Quartin, consentia aos prosadores: a prosa é a linguagem real, admite defeitos, pode ter o nariz torto; o verso é a estátua: há-de ser bela, irrepreensível, modelo. A prosa de Luis Ene tem todas as virtudes da poesia. E da grande poesia. Estátua é. Modelo.
Definir como se designará a forma final – se microconto, se poema em prosa, se aforismo, se microficção – parece-me aqui um tema absolutamente desnecessário. Não desconheço que o debate corre em torno de autores como Rui Costa, Henrique Manuel Bento Fialho, Paulo Kellerman ou o próprio Luis Ene (aliás, veja-se o blog Ene Coisas sobre isso mesmo); mas ele é aqui, nesta abordagem crítica, inecessário.
Deixo-vos assim, concluindo, com mais uma pérola do Muchas Veces Me Sucede Olvidar Quien Soy. O texto 29, que considero um dos momentos altos da escrita literária portuguesa deste século XXI: Porque queria parecer mais magro, certo homem passou a andar na companhia de gordos. E porque queria parecer mais inteligente, passou a andar na companhia de idiotas. Verdade seja dita as coisas não lhe correram bem: os gordos achavam-no idiota, e os idiotas achavam-no gordo.
E nada melhor, para fechar o anel, que o reconhecimento que o autor por si mesmo faz do uso da palavra na sua obra literária: 22 - O que se pode dizer com meia dúzia de palavras? Muito, mesmo muito, muito mais do que se imagina. Basta calar bem fundo em nós a arrogância de tudo explicar.
Luis Ene, um caso maior da poesia portuguesa actual.

Olhão, 26 de Maio de 2014

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