segunda-feira, 13 de outubro de 2014

À CONVERSA COM 16 de OUTUBRO

DIA 16 DE OUTUBRO À conversa com

ANTÓNIO BAETA - A Poesia no Garb al-Andalus

com início às 19 h, no Bar de Vinhos About Wine, em Faro

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Poesia & Companhia
Sessão de 16 de Outubro

Quero deixar-vos algumas indicações que facilitem a compreensão de alguns assuntos que irei abordar e têm a ver com a estrutura da língua árabe:
- a língua árabe é basicamente consonântica trilítera. Quero dizer que, no fundamental, as palavras usam 3 consoantes.
- as vogais existem e são três: a, i e u, mas não se escrevem, a não ser quando os textos se dirigem a não falantes do árabe, nos primeiros tempos de aprendizagem e são reconhecidas por sinais muito rudimentares, tipo traços ou curvas.
Vejamos um exemplo: ( o exemplo socorre-se da transliteração dos sons das letras árabes para a sonoridade da escrita latina)
Ktb
Trata-se de uma palavra árabe, sem vocalização, mas que qualquer falante ou estudante de árabe reconhece.
Sem contexto ler-se-ia Kataba, que significa precisamente o que estou a fazer – escrever.
Mas com aquelas três consoantes (ktb) eu poderia ter sido levado a ler a palavra livro, por exemplo, já que se escreve exatamente da mesma maneira - KTB, mas cuja sonoridade seria kitáb.
Com as mesmas consoantes poderia ler, em adequado contexto, kátíb e então aí estaria a referir-me a escritor.
O uso da acentuação assinala as vogais longas (em árabe identificadas como consoantes), daí o uso destes dois acentos na mesma palavra, em kátíb.
E com o básico Ktb poderíamos continuar a escrever escola, por exemplo, com o simples acrescento de uma letra que tem função operativa, o m, em maktab.
Poderíamos continuar com mensagem, nota, escritura, inscrição, livreiro, livraria, biblioteca, copiar, transcrever, transcrição, corresponder-se
Na sua base consonântica trilítera é este o papel das vogais, que os falantes não necessitam usar na escrita, pois identificam a sua base nos contextos de leitura.
Complicado? (falaremos no dia 16. Entenda-se como uma curiosidade, muito utilizada na poesia em figuras de retórica)


terça-feira, 7 de outubro de 2014

À CONVERSA - DIA 16 DE OUTUBRO

Quem quer saber o melhor de uma pessoa espreite-lhe o Facebook. Quem quer conhecer realmente alguém, espreite-lhe o blog.
O António Baeta, convidado da próxima À CONVERSA, tem um blog, visite-o.

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DIA 16 DE OUTUBRO À conversa com

ANTÓNIO BAETA - A Poesia no Garb al-Andalus

com início às 19 h, no Bar de Vinhos About Wine, em Faro
 
 
 

 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Dia 10 de Outubro em Loulé

Caros amigos,

Levar a poesia e o gosto pela leitura de textos poéticos a espaços públicos e mais perto da população que nem sempre tem acesso a livros de poesia é o que pretendemos com esta iniciativa de itinerário pelos cafés de norte a sul de Portugal.

A escolha do Café Central tem também a ver com a recuperação de locais absolutamente esquecidos em algumas cidades, e que deviam, em 
alguns casos, ser considerados património cultural.

Durante várias semanas, percorreremos vilas e cidades de norte a sul a lerpoetas com a chancela da Assírio & Alvim e da ABYSMO

A leitura dos poemas estará a cargo de Rui Portulez (https://www.linkedin.com/pub/rui-portulez/60/934/791), e em alguns casos, de actores locais e pessoas incógnitas que a isso se propuserem. Haverá também acompanhamento musical.

A divulgação tem o apoio da DGLAB  ( http://livro.dglab.gov.pt ) das editoras envolvidas e da entidade organizadora representada pelos intervenientes com a colaboração  de algumas publicações e órgãos de comunicação social. 

Haverá também uma banca em cada sábado, com venda de livros.

Vamos estar em LOULÉ no próximo dia 10 de OUTUBRO às 18h, contamos com a vossa presença e pedimos que nos ajudem a divulgar esta iniciativa junto da população local.


Muitíssimo obrigada !


//

Serão muitos, pelo país fora, os cafés que vão passar a servir poesia durante a tarde.

Um de cada vez, para que possam percorrê-los todos: no dia 10 de Outubro, Há Poesia no Café Central vai ao Café Calcinha, em Loulé. A partir daí levará poemas a Amarante, Évora, Arganil, Braga, Sesimbra, Caldas da Rainha, Beja, Tomar, Coimbra, Alcobaça, Vila Real e todas as cidades/vilas que se seguirem.

As datas e o nome dos cafés em cada localidade irão sendo reveladas pela organização. Entretanto, “convida-se o público local a escolher os poemas de que mais gosta, se quiser oferecê-los ao lanche. Procure-os na Biblioteca Municipal, leve o livro consigo ou inscreva o poema na página de Facebook “Há poesia no Café Central”, para que seja lido ao som do acordeão de Rini Luyks e da voz de Rui Portulez”.
Os encontros têm o apoio das editoras Assírio & Alvim e Abysmo e, como grandes aliados, as Bibliotecas Municipais e os mais emblemáticos cafés locais. 


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

POESIA & COMPANHIA À CONVERSA COM

DIA 16 DE OUTUBRO À conversa com

ANTÓNIO BAETA - A Poesia no Garb al-Andalus

com início às 19 h, no Bar de Vinhos About Wine, em Faro






terça-feira, 16 de setembro de 2014

Desafio Poesia & Companhia

O desafio é escreveres um poema breve que inclua pelo menos três das seguintes palavras:
flor, palavra, pedra, rio, sandália, sol.
Poderás juntar outras palavras à tua escolha, desde que não sejam substantivos.
Coloca aqui nos comentários quantos textos quiseres ou envia-os por e-mail. Os escolhidos serão lidos na próxima À Conversa.

***

A palavra é
como uma pedra
atirada ao rio

António Baeta

***

tua sandália tem uma pedra
tua flor um rio de palavras
seca a conversa ao sol

Ana Carvalhosa

***

Dentro de cada pedra
há sempre um sol
Dentro de cada flor
Há sempre um rio
Dentro de cada palavra
Apenas palavras

De sol a sol, rio do rio, disse a flor à pedra, que logo se riu. De referir que dou a minha palavra que nem a flor nem a pedra usavam sandálias, já quanto ao rio não garanto.

Ri o sol no rio
Ri o rio ao sol
Ri a flor ri a pedra
Riem todas as palavras


todos os rios
(de flores de pedras de sóis de sandálias)
são rios de palavras

 Luís Ene

***

uma flor é uma palavra e uma palavra é uma pedra e uma pedra é um rio e um rio é uma sandália e uma sandália é o sol.

Rogério Cão

***

A palavra Sol: era uma vez uma palavra que caiu no rio. A sandália, a pedra e a flor continuaram a andar, a pedrar e a florir. Mas o sol secou o rio para salvar a palavra. Desde então ela só fala do sol.

Esculpir a palavra: pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, pedra, flor.

Há quem ponha sempre flor de sol na palavra, mas eu também gosto dela sem sol.

Já tentei bater no sol com a minha sandália, já lhe joguei uma pedra, só de ouvir a palavra sol apetece-me afogá-lo no rio.

Marco Mackaaij

***

Não sei o que me será mais útil: se sandálias se palavras para atravessar o rio. Dependerá do rio.

Sara Monteiro

***

Um poema breve

É como uma flor numa sandália. Escreve-se na pedra de um rio, ao sol. Basta-lhe uma palavra.

Fernando Cabrita

***

Mesmo debaixo de um sol assim de pedra viu nascer a esplendente flor.
Ao atravessar o rio transparente perdeu a sandália ao deparar-se com uma palavra eterna.

Pedro Jubilot

***

Rio de pedras e flores,
umas vermelhas, verdes, azuladas,
outras hexagonais, quadradas,
de amarelo iluminadas,
pela palavra sol.

..de pedra em pedra,
de flor em flor,
gerou-se a palavra.

Marco Mangas

***

prefiro o sol, o rio, a pedra, a flor, até a sandália, à palavra.


Pedro Afonso

***

a flor ao sol
a pedra no rio
a palavra sem sandália

Paulo Moreira

***

a palavra é um rio de pedra
a palavra é uma pedra no rio
a palavra é um sol em flor
a palavra é uma flor ao sol

à palavra não basta ser apenas palavra


Não sou pedra, nem rio, nem flor, nem sol, disse a palavra. Chamam-me sandália, desde que ando descalça.


A pedra sorriu quando o sol se banhou no rio. A flor adormeceu e sonhou que nunca mais diria uma palavra.


— Juro! O sol tropeçou na sandália, caiu ao rio e fez-se flor. Dou-te a minha palavra.
— Que grande pedra!

Fernando Gomes

***

Microficção

Uma palavra-pedra ardia ao sol, quando foi atacada por uma sandália-rio que a chutou. Morreu afogada!

Lídia Borges / Olívia Marques

***

Corre sandália
A tua flor levada no rio

Luís Nunes Alberto

***


Da palavra fazes pedra - magoas-me.
Da palavra fazes flor - não acredito.
Deixa lá a palavra e faz de mim rio.

Gisela Estrada

***


Tanto a palavra como a pedra se afogam no rio, pesam, centralmente.
Molha-se a sandália ao sol para se esquecer, ilude-se acima de se afogar, centralmente.
Central é a flor, única, singular, que não existiria sem nenhum e sem palavra que a descrevesse e sem sandália para a pisar.

Martim Santos

***

Cheiro que se molha
e traz do rio
a flor de sol
com folha de sal
num lava - pedra
que devolve à palavra
deixa o coração
sujo de criança
Dina Isabel Dias

***

Caminhava pelo rio
Com uma pedra na mão e uma flor na cabeça
Não fosse a sandália e o incandescente sol

Não tinha morrido sem dizer palavra.


Paula Romão

***

Por amor arrancou o seu coração, com ele, esculpiu 
pequenas pétalas de pedra numa flor sem nome.
Cravou-a no peito e mergulhou num rio sem fundo.

Paulo Ramos 


***

Cheiro que se molha 
e traz do rio 
a flor de sol 
com folha de sal 
num lava - pedra
que devolve à palavra
deixa o coração
sujo de criança


Dina Isabel Dias

***

Desliza marulhando
Pelo rio barrento e sujo,
Na pedra nasce a flor.


Natália Vale

***

Uma palavra

Escondida, a flor ensaiava uma palavra. Empedernida, a pedra mastigava uma palavra. Lânguido, o rio marulhava uma palavra. Despudorada, a sandália esmagava uma palavra. Omnipotente, o Sol cozinhava uma palavra.

A palavra, essa, ignorava tudo e todos e descrevia-se a ela própria.

(La Donna Ignobile) 


Genoveva




sábado, 13 de setembro de 2014

al mutamid

À Conversa

No último trimestre deste ano decorrerão três conversas. Para que se preparem para essas conversas e entrem nos temas propostos iremos fornecer algumas indicações diversas e pedimos que o façam também. Se quiserem, podem enviar-nos o que quiserem ou colocar diretamente neste blog.

Para o próximo tema - poesia do al-andaluz - fica aqui uma ligação: poetas do al-andaluz.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Poesia & Companhia volta à conversa


Poesia & Companhia vai voltar a estar à conversa com novas edições da sua tertúlia, que teve já 3 edições em Maio, Junho e Julho.

Interrompida em Agosto e Setembro, voltará renovada no último trimestre deste ano, com três conversas que muito em breve serão anunciadas.

Pretendem-se conversas animadas, com um convidado e um tema, com um período prévio de preparação e propostas de participação no blog.

Aguardem notícias e digam coisas.


sexta-feira, 20 de junho de 2014

À Tertúlia n.º 1

Porque o prometido é devido, o número 1 de À TERTÚLIA, realizou-se n’ A Venda, no dia 19 de Junho, com início às 18:30, seguido de jantar.


Os participantes foram chegando e a conversa iniciou-se sem pressas.


O promotor moderador da sessão foi o Marco Mackaaij, à direita na foto.



O tema, ou mote, era A LITERATURA E A VIDA e sobre ele se discorreu, falando-se e lendo-se poemas e outros textos, como um conto de Soeiro Pereira Gomes, As crianças da minha rua, que provocou fortes emoções.


Envolvendo a tertúlia, o Vasco, recém saído da apresentação da sua tese de doutoramento sobre o poeta João Lúcio, e a presença ocasional do poeta António Cândido Franco, que não disse, mas podia ter dito: Chamo poesia à imaginação; fora da imaginação não sei o que seja poesia. A imaginação é tanto mais forte quanto se aproxima do inimaginável. Só essa aproximação, assim impossível, traz consigo a percepção de um outro mundo, virgem, original, desconhecido.


E depois jantou-se, mas ainda se ouviram poemas como este, com que acabo este breve relato, trazido à tertúlia pelo Marco.


Um Homem e a Sua Vida


Um homem não tem tempo na sua vida

para ter tempo para tudo.

Não tem momentos que cheguem para ter

momentos para todos os propósitos. Eclesiastes

está enganado acerca disto.

Um homem precisa de amar e odiar no mesmo instante,

de rir e chorar com os mesmos olhos,

com as mesmas mãos atirar e juntar pedras,

de fazer amor durante a guerra e guerra durante o amor.

E de odiar e perdoar e lembrar e esquecer,

de planear e confundir, de comer e digerir

que história

leva anos e anos a fazer.

Um homem não tem tempo.

Quando perde procura, quando encontra

esquece, quando esquece ama, quando ama

começa a esquecer.

E a sua alma é erudita, a sua alma

é profissional.

Só o seu corpo permanece sempre

um amador. Tenta e falha,

fica confuso, não aprende nada,

embriagado e cego nos seus prazeres

e nas suas mágoas.

Morrerá como um figo morre no Outono,

Enrugado e cheio de si e doce,

as folhas secando no chão,

os ramos nus apontando para o lugar

onde há tempo para tudo.


Yehuda Amichai (1924-2000), poeta israelita.



(Tradução de Shlomit Keren Stein e Nuno Guerreiro)


[Até à próxima!]






terça-feira, 17 de junho de 2014

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA?

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? - 5

Fernando Cabrita

Muchas Veces Me Sucede Olvidar Quien Soy – LUIS ENE

Luis Ene, nome literário do escritor Luis Nogueira, tem absoluta razão quando epigrafa o seu blog Ene Coisas com a frase “Nada é simples quando se trata de palavras. Quando se trata de palavras até a palavra simples é complicada.” É que, na verdade, o ofício do escritor -- e mormente o do poeta -- faz-se de palavras. Vaza-se em palavras. Inicia-se e conclui-se por palavras. Pela Palavra.
O poeta existe pela Palavra, cumprindo-a, trabalhando-a, exercitando-a; e a Palavra dá-nos a existência do poeta, afirmando-o através dela. Mesmo as poéticas de ruptura ou de descontinuidade, mesmo o experimentalismo, mesmo os movimentos dadaístas, não prescindem dessa matéria-prima. Prima, porque primeira e primeva; portanto inicial e iniciática.
Toda a poesia é uma música de palavras; e uma teia de imagética tecida de verbo, diacrónica e sincronicamente. A lição encontra-se nos textos saussurianos, em qualquer manual estruturalista, em Barthes, na obra As Palavras E As Coisas de Michel Foucault (especialmente no capítulo IV – A Escrita das Coisas), ou nos estudos de Pessoa sobre a Nova Poesia Portuguesa; mas está condensada de modo brilhante, sem mácula alguma e acima de toda a dúvida, no livro de poemas Lex Icon, de Salette Tavares: Dêem-me palavras que eu descobrirei as coisa/ dêem-me coisas que eu descobrirei as palavras/ Entre as palavras e a coisa o intervalo é nenhum/ palavra ou coisa a eloquência pertence-lhes: à palavra porque diz a coisa/ à coisa porque diz a palavra.
A palavra, assim exercitada, desenha o mundo. Torna-se matéria. Palpita nela o significado, a realidade, a identidade iconográfica das coisas. Mas se, ademais, é no ofício poético que ela se exercita, ela mais do que desenhar, redesenha a realidade, dá-nos o sentido do oculto, crias novas dimensões de si mesma e do que significa, transmuda-se em outra sendo a mesma. Vive -- e cria vida.
Resumiu bem este sentido poético do verbo, na sua relação com o mundo, Cooleridge, quando numa carta a William Godwin em Setembro de 1800 dizia: "Gostaria que escrevesses um livro sobre o poder das palavras. Será o pensamento impossível sem sinais arbitrários? E até que ponto a palavra “arbitrário” é adequada? Não são as palavras, etc, partes e germinações da planta? E qual é a lei do seu crescimento? Eu de certo modo tentaria destruir a velha antítese de Palavras e Coisas, elevando as Palavras a Coisas e, até mais do que isso, a coisas vivas.”
E são essas palavras feitas coisas vivas que Luis Ene nos dá no seu Muchas Veces Me Sucede Olvidar Quien Soy. O título vai em castelhano, porque o livro, sendo bilingue, é aliás o primeiro livro da Colecção Palavra Ibérica, que abriu assim com uma obra excelentíssima. Luis Ene é o primeiro autor da palavra Ibérica – e ainda bem. Leia-se o texto nº 6 : Um homem foi ao fundo uma vez, outra, e outra ainda, mas não morreu. A questão que lhes quero colocar, caros leitores, não é quantas vezes mais pode ele ir ao fundo e ficar vivo, mas sim quanto tempo poderá ele ainda estar vivo sem ir de novo ao fundo.
Simples, conciso, brilhante. Como se fora todo um propósito. De vida, de escrita, de sabedoria intrínseca numa e em outra. E vejam-se também, sob o mesmo prisma de anunciação, os textos 15 e 18: 15- Um livro que se fecha é um livro que se abre. Um amor que acaba é um amor que começa. Na leitura e no amor não há intervalos. Se ainda não começou de novo é porque ainda não acabou de vez.
18-Um homem encontrou um livro estendido num banco de jardim e perguntou-lhe: Quem te perdeu? Ao que o livro respondeu: Ninguém me perdeu, na verdade fui aqui deixado para que alguém me encontrasse e me levasse consigo. Mas ainda o livro mal acabara de falar e já o homem abalava sozinho sem dizer sequer uma palavra. [A moral desta história é dupla: há livros que não falam ao coração dos homens; há homens que são surdos à voz dos livros].
Não deixa de nos estremecer a profundidade do pensamento que assim se expõe. À primeira vista, parece que o intertexto se compõe de material pobre da língua, um conjunto reduzido de palavras banais, num vocabulário corrente e quotidiano. Mas quanta imensidade nesta banalidade aparente! Quanta elevação, sem qualquer deslize de pretensiosismo! O teclado aparentemente restrito e directo da expressão, dá-nos contudo um universo de interrogações, um mundo de imagens que alfim reconhecemos nítidas, sólidas, intemporais.
As palavras de Luis Ene podem ser as mais triviais; mas a sua escrita é de um trivial magnífico, se alguma necessidade houvesse de encontrar uma expressão que a definisse. Ele sabe-o; e é essa sabedoria que faz da sua poesia, que se apresenta sob as veste de prosa, uma grande criação poética. E sabe-o quando diz, como referi acima, que nada é simples quando se trata de palavras. Quando se trata de palavras até a palavra simples é complicada. Pois. As palavras simples são complicadas quando as tornamos coisas vivas. E Luis serve-se ainda da melhor ironia, para nos dar esse sentido estranho das palavras vivendo por si mesmas.
Dos seus textos rescende essa saborosa corrente cáustica e crítica que atravessa a literatura portuguesa desde os autores trovadorescos. Veja-se o texto 13: A minha mulher é excepcionalmente quente, e eu gosto de acender os cigarros no seu corpo, declarou ontem o homem detido por maus-tratos conjugais. Ou, no mesmo registo, o texto imediatamente anterior: -12 Um homem declarou o seu amor a uma mulher. Esta, sabendo-o muito violento, disse-lhe que sim, mas com uma condição: deveria ajoelhar-se à sua frente, de cabeça baixa e ficar imóvel por alguns minutos. Contente, ele assim fez, e muito pouco tempo passou até que ela lhe desferiu uma forte pancada na base do crânio que o matou de instantâneo. [A moral desta história é bastante clara: muitas vezes um sim condicional em nada se distingue de um não peremptório.]
Texto curto, simples, aparentemente quase simplista. Mas eis o conjunto, a conclusão; e tudo se revela grandioso, magnifico, excelso. Luís é um exímio cultor da palavra no seu uso minimalista – e assim a engrandece.
Com poucas palavras, e das mais correntes e banais; uma dose certa de ironia fina; e um uso contido da linguagem, por vezes a roçar o silêncio, constrói filosofias inteiras. Interroga-se e interroga-nos. Dá-nos o sentido do ridículo de algumas existências, o cómico-trágico de condutas e comportamentos. Convoca-nos. Surpreende-nos. Interpela-nos. A sua coesão estilística é soberba. Sente-se ali a visão literária dos imagistas ingleses do início do passado século: o horror da retórica, do lugar-comum, da declamação oratorial, do barroco quantas vezes pretensioso. Estão ali aqueles versos joviais, secos e sofisticados que Hulme previa. Está ali o ensinamento de Pound: Não deve haver lugares comuns, frases feitas, estilo jornalístico estereotipado. A única forma de fugir a isto é pela precisão, resultado da concentração da atenção sobre o que se está escrevendo….objectividade, e ainda objectividade e expressão (…)
Desta forma de encarar a poesia e de a exercitar, resulta que a forma final é a do texto em prosa. Mas prosa que não admite os vícios que João de Deus, em carta de 1898 a Alfredo Quartin, consentia aos prosadores: a prosa é a linguagem real, admite defeitos, pode ter o nariz torto; o verso é a estátua: há-de ser bela, irrepreensível, modelo. A prosa de Luis Ene tem todas as virtudes da poesia. E da grande poesia. Estátua é. Modelo.
Definir como se designará a forma final – se microconto, se poema em prosa, se aforismo, se microficção – parece-me aqui um tema absolutamente desnecessário. Não desconheço que o debate corre em torno de autores como Rui Costa, Henrique Manuel Bento Fialho, Paulo Kellerman ou o próprio Luis Ene (aliás, veja-se o blog Ene Coisas sobre isso mesmo); mas ele é aqui, nesta abordagem crítica, inecessário.
Deixo-vos assim, concluindo, com mais uma pérola do Muchas Veces Me Sucede Olvidar Quien Soy. O texto 29, que considero um dos momentos altos da escrita literária portuguesa deste século XXI: Porque queria parecer mais magro, certo homem passou a andar na companhia de gordos. E porque queria parecer mais inteligente, passou a andar na companhia de idiotas. Verdade seja dita as coisas não lhe correram bem: os gordos achavam-no idiota, e os idiotas achavam-no gordo.
E nada melhor, para fechar o anel, que o reconhecimento que o autor por si mesmo faz do uso da palavra na sua obra literária: 22 - O que se pode dizer com meia dúzia de palavras? Muito, mesmo muito, muito mais do que se imagina. Basta calar bem fundo em nós a arrogância de tudo explicar.
Luis Ene, um caso maior da poesia portuguesa actual.

Olhão, 26 de Maio de 2014

sábado, 14 de junho de 2014

(H) À TERTÚLIA

 
Dia 19 de Junho, com início às 18:30 e termo previsto às 20 horas,  terá lugar o número 1 de (H) À TERTÚLIA, que se realizará n’ A Venda (Tasca, Mercearia e Boa C.ª.), na R. do Compromisso, 60, 8000-252 Faro (perto da Igreja de S. Pedro)

O número 1 terá como suporte o tema A LITERATURA E A VIDA. Que importância tem a literatura na nossa vida? De que forma nos ajuda? Será moderador (informal) Marco Mackaaij e contamos com o poeta Tiago Nené.
 
ENVIEM desde já de um a quatro pequenos textos ( poemas, aforismos, fragmentos..) que foram de alguma forma importantes nalguma fase da sua vida!

A hora de entrada e de saída dos participantes não obedecerá a outra regra senão incluir-se no horário acima previsto.

(contacto: marco.mackaaij no FB ou marco.mackaay@gmail.com ou 967706289)


quinta-feira, 5 de junho de 2014

À TERTÚLIA número 1

CONVITE

Depois do zero vem o 1, por isso, no próximo dia 19 de Junho, com início às 18:30, terá lugar o número 1 de À TERTÚLIA, que se realizará n’ A Venda (Tasca, Mercearia e Boa C.ª.), na R. do Compromisso, 60, 8000-252 Faro (perto da Igreja de S. Pedro)

À Tertúlia pretende ser um espaço de cultura onde se fala do que à tertúlia é levado pelos seus participantes. A base é a poesia e o diálogo com as outras artes, bem como a participação livre de cada um, que poderá levar à tertúlia o quiser: textos, filmes, convidados.

O número 1 terá como suporte o tema A LITERATURA E A VIDA. Que importância tem a literatura na nossa vida? De que forma nos ajuda? Será moderador (informal) Marco Mackaaij , que prepará este número 1.

Tendo em atenção o tema, é pedido desde logo aos participantes que:
- enviem desde já de um a quatro pequenos textos ( poemas, aforismos, fragmentos..) que foram de alguma forma importantes nalguma fase da sua vida.
- se prestem a falar sobre a importância da literatura na vossa vida, indicando, ou não, livros, contos, poemas, autores ilustrativos dessa importância.

Nesta edição contaremos com um jantar, para quem estiver interessado, no próprio local onde se realizará a tertúlia. O jantar terá início às 20:30 e tem o custo estimado de 16/15 Euros, dependendo do número de participantes. Tendo em atenção a logística da preparação da ementa e o facto de o número de comensais não poder exceder os vinte e dois (22), agradece-se que confirmem a vossa presença com a maior urgência possível, o máximo até ao dia 13  do corrente.

A hora de entrada e de saída dos participantes não obedecerá a outra regra senão incluir-se no horário acima previsto.


(contacto: marco.mackaaij no FB ou marco.mackaay@gmail.com ou 967706289)


domingo, 1 de junho de 2014

(H) À TERTÚLIA - memória descritiva


CONVITE

No próximo dia 30 de Maio, com início às 18:30 e termo previsto às 20:30, terá lugar o número 0 de À TERTÚLIA, que se realizará no bar de vinhos About Wine, sito na Rua Horta Machado 20, em Faro (nas traseiras da Cruz Vermelha/Teatro Lethes).

À Tertúlia pretende ser um espaço de cultura onde se falará do que à tertúlia for levado pelos seus participantes. A base será a poesia e o diálogo com outras artes, bem como a participação livre de cada um, que poderá levar à tertúlia o quiser: textos, filmes, convidados.
Este número 0 é um ensaio de uma experiência que se pretende que continue, assim o entendam os seus participantes. Pretende-se que a realização/moderação de futuras tertúlias – última sexta de cada mês – seja dividida/partilhada por todos.

Nesta edição contaremos com
- Prova cega de 2 vinhos (3 Euros) e informação/palestra sobre o léxico mais vulgar usada na descrição/crítica de vinhos, no que se contará com o apoio dos donos do local;
- Paulo Serra, pintor farense, que apresentará uma obra sua e estará disponível para dialogar com os participantes.
- Apresentação de uma série de poemas com o título “O pintor e o poeta encontram-se no branco da folha”, de Luís Ene, ditos pelo próprio;
- e o que mais acontecer, dependendo dos
convidados/participantes, que poderão trazer à tertúlia o que quiserem, se possível avisando para prévio agendamento.

A hora de entrada e de saída dos participantes não obedecerá a outra regra senão incluir-se no horário acima previsto.

Será moderador (informal) Luís Nogueira, que preparou este número 0.

Vem e traz um amigo (ou mais), avisando, por questões logisticas, até um dia antes.
 
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À TERTÚLIA (nº0) - About Wine (r.horta machado) Faro, 30.05.14
«a poesia em diálogo com outras artes» coordenação de Luis Nogueira

os presentes saíram mais encorpados e frutados (e etc.), não só da prova de vinhos, tb. da arte visual 'distraída' como alguém chamou ao desenho que Paulo Serra apresentou. / Luis Nogueira trouxe poemas sobre as horas de observação do trabalho do artista plástico lidos por Marco Mackaaij / para diálogo tb. a relação poesia ( Pedro Jubilot ) - fotografia (Jorge Jubilot ) nos livros da editora CanalSonora.

 
 

 
 

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 À Tertúlia continuaremos, então, na última sexta-feira do próximo mês de junho, sendo o seu moderador/impulsionador o Marco Mackaaij!

sexta-feira, 30 de maio de 2014

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA?

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? – 4
Fernando Cabrita

HABITACION COM ISLAS - Manuel Moya

Manuel Moya é, e digo-o sem grande receio de me ver desmentido, não só um dos maiores poetas da Andaluzia, mas um dos grandes poetas contemporâneos da Espanha. E não o digo pelo número e importância dos prémios que a sua obra tem recolhido ao longo de anos. Digo-o pelo sentido intrínseco da poesia que rescende do seu texto, e pela marcha evolutiva que essa poesia vem ganhando, livro a livro, enrijecendo-se, avolumando-se, crescendo em tonalidade e, contraditoriamente, em complexidade e simplicidade.
Na verdade, na poesia espanhola actual a obra de Moya avulta. E maior significado tem isso porquanto a mesma se produz, distante dos luzeiros do vedetismo mediático, na pacata Fuenteheridos, pequena e belíssima povoação da Sierra de Aracena, entre castanheiros altos e sombras ridentes. Quando ali passo -- não muito, com pena o reconheço--, visito-o. E encontro-o regularmente ocupado na leitura de um novo poeta, na tradução de autores portugueses, na véspera de uma deslocação para uma palestra, um recital, uma apresentação, ou para ir receber mais um prémio.
Sei que não é bom método de crítica que, antes de falar do livro de que me ocupo, abra encómios à demais obra. Mas não resisto a referir alguns dos Prémios Literários de Moya. Porque isso dá-nos também a dimensão do escritor e do poeta. Atente-se: Premio Gabriel Celaya, em 1993; Premio Ciudad de Córdoba, em 1997; Premio Ciudad de las Palmas, em 2000; Premio Leonor de Poesía, em 2001; Premio Fray Luis de León, em 2001 e de novo em 2005; Premio Faroni de Microcuento, em 2006; Premio Vicente Presa, em 2007; Premio Salvador Rueda, em 2008; Prémio de Poesía Tomás Morales, em 2010, atribuído na Gran Canaria; Premio Fernando Quiñones de Novela, em 2010 --este, aliás, atribuído ao seu romance Cenizas de Abril, no título original, mas romance e trama totalmente portugueses, percorrendo os anos difíceis da ditadura portuguesa até ao 25 de Abril de 1974, e prolongando-se para lá dele. Está em Portugal editado pela Sextante, sob o título Cinzas de Abril. E como se tudo isso não fosse já suficiente para se perceber estarmos na presença de um poeta maior, eis que em 2013 lhe é atribuído o Premio Iberoamericano de Poesía Hermanos Machado.  
Habitacion con Islas é uma antologia de poemas de Moya. Reúne poemas de 1984 a 1988; e até 2000 na edição portuguesa, a mais tardia. Daí talvez que a minha escolha, entre tantos outros livros seus, tenha recaído neste, que representa um percurso por aquilo que é o mais marcante e sintomático do macrotexto poético de Manuel Moya: a interrogação sobre a marcha e a luta do ser humano, a sua condição, o seu lugar no mundo. A poética de Moya é uma constante reflexão. A reflexão de um homem que maduramente se pensa, imperturbável na sua ligação à terra, reencontrando-se nos outros que se lhe cruzam, nos que antes dele foram, percebendo-se ao mesmo tempo distinto e igual, renovado ou ultrapassado por si próprio a cada estado de consciência, cavando dentro de si os estranhos túneis que o conduzem de si mesmo a si mesmo, e saindo do outro lado, todavia sempre novo, sempre um outro, e sempre igual ao que fora antes. Este soy/ quien ahora se empeña en habitarme/ quien inútilmente me abraza desde el sueño, confessa-se no Autorretratos (pág. 13). Este soy/ testigo inseparable de ese otro que coincide conmigo en la vigilia. O canto é, assim, claramente tributário de Rimbaud (que aliás figura, el pobre Arturo, no poema da pág.29); mas, ainda que tributário, é-o em profunda originalidade, como se em cada poema ouvíssemos respirar, em haustos autónomos, ambas as identidades, uma e outra, dois seres que habitam o homem e o poeta e lhe trazem a estranheza em que se mede. Sintomático, em Memoria de Ultratumba: En otros fui, ganado a sus facciones/trazándome en sus máscaras.
E na edição portuguesa, aumentada porque recolhendo poesias de anos posteriores, deparamos (pág. 24) com Os Outros, poema que não resisto a aqui transcrever por tão ilustrativo daquilo que digo acima: Ás vezes chega e fica a viver nas minhas camisas/ e brinca com os meus gatos e calça as minhas sandálias,/ ocupa a minha parte nesta cama/ e passeia como um pai ante os meus filhos./ Ás vezes surpreendo-a seguindo-me em meus passos./ Seus olhos povoam-me as pupilas,/ sua voz em nada se distingue da minha/ e até nas minhas mãos leio as linhas das suas./ Ás vezes sento-me a confessar diante do espelho/ as suas torpezas. /Indecisa, néscia, talvez cega/ foge de mim e logo volta. Não a chamo:/como chamá-la, se não atende à voz com que a nomeio,/ se ao fim desmente os meus versos, as minhas palavras/ e pronta se vai, desdenhosa, infiel, tão de repente.
Ei-la pois, em misteriosa e bela forma poética, essa outra identidade, essa outra personagem, a outra pele. Há aqui uma desidentificação pessoana, em que o poeta, ele próprio e como um observador de si mesmo, reconhece a outra criatura que em si por vezes e de surpresa habita. Uma despersonalização consciente, como um sonho dentro de um sonho, no melhor sentido de Borges. 
Esta referência a Pessoa não espanta. Manuel Moya é um cultor da língua e da literatura portuguesa. Pessoa é só um dos vários autores que Moya traduziu para castelhano e que estudou e comentou. Pessoa está ali, na sua obra, como aliás está o seu contrário. Já o disse numa apresentação de um livro de Moya. O seu poema Que claro ser el de esta piedra (pág. 8, ed. castelhana), integra-se com toda a harmonia no conjunto de versos de Alberto Caeiro; e nos anteriores de João Lúcio, versos quase polémica a anos de distância, sobre o que sentem as coisas. Pessoa/Caeiro terá conhecido a obra de Lúcio através de Francisco Fernandes Lopes (desenvolvo esse tema num texto publicado nas Teses do Congresso Internacional sobre Álvaro de Campos); e poetiza no sentido oposto, resumindo que as coisas não sentem; se sentissem seriam seres, não seriam coisas. Moya, nesta poema de pág. 8, aproxima-se de João Lúcio. No claro ser de la piedra ele sente vida. Quando paso junto a ella,/ sin embargo, escucho sus latidos./ Dentro se muéve un perro/ un nardo, la vulva, el angél. Simplicidade e complexidade. Poderosas imagens, na maior concisão do texto.
Mas o sentido maior da sua poesia é essa procura do sentido da existência do homem no mundo. A sua condição na relação com os outros, com a terra que lavra e que o lavra a ele, com a luta diária pelo respeito que lhe é devido, pelo seu trabalho, pelo seu pão quotidiano. Leia-se este pão de cada dia sem sentido religioso. Nada de religioso encontro aqui, note-se. Mas há em tudo um apelo forte à dignidade, à inteireza de cada criatura, ao reconhecimento da divindade humana ínsita em cada um de nós. Por todos, o poema Salario (pág. 43): A cada hombre su luna e su salario/ su tanto de sal, su pobre mano / abrasada e hueca. Yo fui con eses hombres y como uno de ellos/ he vuelto a casa con la luna en los ojos.
Leia-se de seguida o poema Campo de Níjar (pág.11) – e aí está o fecho do anel, o círculo a completar-se. O homem ante a visão da terra. Essa visão de que de novo virá, de um renascimento sem pressa. Homem e terra, o homem a cuyo pie las horas, sin urgencia/ ciernen la arena y la semiente/ que más tarde esparcirán su luz por esos campos. Mas este homem que Moya canta é o homem real, o homem que vive as venturas e os anseios da vida, mas também o homem ferido pela maldade dos seus iguais, pela crueldade, pelo tempo e pelas vicissitudes. A efémera condição humana aparece-nos inteira em Visita a Pompeya (pág. 40), belo e curto poema que encerra toda essa fragilidade da nossa condição. Ou ainda na pungente meditação em Silves, sobre o rio, na companhia da sua filha (pág.37).
Como não apelar então à dignidade de cada homem, ao respeito pelo seu labor e pelo seu trabalho, encarando-se, a cada passo, a efemeridade que o marca? Como não denunciar o medo que se apodera dos homens, das sociedades, medo incutido, decerto, retirando-lhes a individualidade, o seu próprio conceito, a sua liberdade, a sua divindade de homens sólidos, livres e inteiros? Esse é o grande sentido da poesia que nesta antologia se recolhe – e que se condensa, de forma exímia, em Cuanto Diste, poema da pág.26, e em Ya Ves, na pág.78 da ed. Portuguesa.
E eis que o poeta se revê de novo a si mesmo, nesse ofício de cavar una trinchera de versos contra el miedo. Refiro-me ao poema Com Tudo o que Perdeu, que surge na edição portuguesa a pág.59. Com tudo o que perdeu/ com tudo o que espera debaixo da terra/ com o fio de tinta/ que tinge o mar e é um sudário/ Em Gádara remota/ no verde Fuenteheridos/ um homem cava uma trincheira de versos contra o medo.
Memórias de Meleagro, memórias mais recentes de um tempo de fogo e cinza que Fuenteheridos e os seus arredores viveram sob o franquismo impenitente e sinistro. Nestes versos contra o medo, ecoa assim toda uma voz ainda, voz múltipla e ancestral, a da Geração de 27, a de Jorge Guillén em Fuera del Mundo, ou a de Alberti em Lo que dejé por ti; e sombras luminosas de Cernuda, e de Aleixandre, e esse Miliciano Morto que cantou Garfias.
Moya reúne em si, como muito legítimo herdeiro, essa corrente imensa da grande poesia espanhola. Habitacion con Islas é, seguramente, um caso sério da poesia espanhola; e , por maioria de razão, da poesia andaluza. E é também uma homenagem a Portugal, que Moya, como homem da raia, nunca esquece. Recordo sempre uma sua frase, numa apresentação: o meu encanto por Portugal vem de há muito. Sou um homem que vive na fronteira. E sei que quando chove no meu pueblo, essa chuva é chuva portuguesa.
E assim, na raia, vai cavando a sua trincheira de versos contra o medo; e vai continuando a pedir para cada homem, que aterido e débil va en pos de su salario, que mantenha em si su luna e su prodígio.
O livro está editado em 3 países e idiomas: castelhano (La Voz de Huelva, 1999), francês (L’Harmattan, 2007), e português (Livro do Dia, 2008, com excelente tradução do malogrado Rui Costa), sendo as edições portuguesa e francesa bilingues, ao conterem o original castelhano.





QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? – 3
Fernando Cabrita

ÉPICA MENOR – António José Ventura

A poesia de António José Ventura, neste como em outros livros extremamente gráfica, é igualmente de grande contenção. Ventura trabalha a língua na sua vertente poética mais pura, fazendo de cada poema um quase retrato de realidades ou memórias; mas também, ao mesmo tempo, apresentando-os num texto claro, conciso, curto no seu melhor sentido, profundo e interrogador. O poema convoca-nos para a visão das coisas que por vezes nos passam quase sem as apercebermos: uma rua, um jardim, o voo de uma ave, o sino que toca pelas seis da tarde, os ecos entre as folhagens. Ventura escreve como quem fotografa – e as palavras são invariavelmente as mais justas e as mais adequadas.
ÉPICA MENOR (Gente Singular editora, 2009, em edição enobrecida por dois desenhos de António Costa Pinheiro) não é o seu último livro (o último, aliás, é uma comemoração a dois – eu e ele -- dos 25 anos passados sobre a atribuição do Prémio Emiliano da Costa à nossa Visões de Marim). Mas aquilo que é recorrente na sua poesia está lá, como nas demais obras: a memória em visita, a peregrinação por lugares reais ou literários, cada qual mais simbólico, a evocação da juventude nas paisagens esvaecidas. E também as referências do cinéfilo e literato culto que António Ventura é; e sempre a busca dum perfeccionismo, que se por vezes parece surgir entre as árvores de um jardim, uma alameda, ou uma rua velha, nunca todavia se alcança.
“Nunca construiremos /a moradia perfeita”, confessava já Ventura no seu A Cidade das Palavras, de 1994. E essa procura da perfeição continua nesta Épica Menor. Pelo sonho, pela palavra. “Caminhamos em direcção à noite./A substância dos sonhos é-nos imprescindível/ para que o nosso corpo não morra.”. A leitura revela-nos uma poética de calma e apaziguamento, quase influtuante, em peregrinação a lugares, a anos dissipados, a recordações, nessa busca contínua da palavra e/ou da cidade perfeitas. A perfeição procura-a Ventura, assim, nas palavras, em todas as palavras, e na cidade. E também nas pessoas (“sempre a urbe e o seu passado/ sempre as pessoas e as coisas”).
Mas a cidade é, por muito que a queiramos ver localizada em Olhão, ou à beira mar de qualquer porto, uma cidade ideal, onde há reminiscências da Grécia clássica e memórias de jardins românticos do Norte. Trata-se da cidade que não é, mas poderia ser ou ter sido. A cidade edificanda: “as palavras são para ser usadas na construção da cidade”, assim abre o Poema Primeiro. Mas também, sabe-o Ventura, “este é um tempo de desconstrução,/ estranhos sortilégios ocultam o presente./ Temos o que não queremos/ e queremos o que não temos” (pág.9). E com palavras, sempre com palavras, vai tecendo essa estranha novela da cidade indefesa, a cidade devassada por todos os desdéns, todas as ruínas, todas as apagadas memórias.
Ventura reconhece-o e declara-o. “Os habitantes ignoravam a memória” (pág.10), mesmo e quando há uma “paisagem atlântica a seguir a cidade na voluta do poema” (pág.16, em que o poema convoca a Galiza, e onde ressoam, na minha leitura e repetidamente, as chuvas de Michel del Castillo, e a morriña galega sobre os prados húmidos). Ventura, com palavras exactas, certas, adossadas ao texto no preciso lugar de cada poema, reconstrói e reconstrói e reconstrói a cidade, sucessivamente, empenhadamente, ao mesmo tempo que a contempla. Contempla-a com um olhar de antiga saudade, mas também de pena pelo futuro. No seu intertexto está reconhecido que as palavras, por exactas que sejam, não têm o condão de fazer ressurgir, do tempo, a cidade perfeita, a cidade que foi outrora e pode ser no porvir. Urbicanda, como um sonho, ou um Desejado que se revele por entre os nevoeiros imemoriais.
Mas – e ai do cidadão que o constata!; mas que vitória para o poeta que o entende (pois é essa a alma da sua poesia e o contraste e a contradição em que ela exulta)! -- a cidade onde Ventura se move, na sua realidade física, não é a cidade do seu ideal poético. É, todavia, uma cidade sem palavras. Ele sabe-o:
A cidade sem defesa
e ausente de palavras
movimenta-se como um rio 
por onde não correm as águas.

Por isso a descrença do poeta. Por isso a sua Épica se lhe figure Menor. Não menor por que menos poética; mas menor porque em vão se esforça, ante o desinteresse e o alheamento. A cidade é de breves casas/ transformadas em casernas/ abrigam corpos de homens/ cheios de cicatrizes várias (pág. 32). Sem se aperceber, sem cuidar do que é poético, do que de nobre e alto e luminoso em si encerra, a cidade derrui-se a si mesma. Destrói as suas memórias, os seus recantos, os seus segredos. O que lhe era íntimo perde-se. O que a definia esvai-se. Ficam as efemeridades, os ruídos, as vagas espumas dos dias. É Roma invadida pelos bárbaros, que desconhecem e não curam da palavra. Da palavra antiga, patrimonial. Ignoram-na. Não a percebem. Menosprezam-na. Ventura há-de dizê-lo mais claramente num poema posterior, no livro 40 Poemas, de 2012: passam autarcas e secretários de estado/raparigas com vestidos de noite/ adolescentes de t-shirt/ bêbados, loucos, suicidas/ prostitutas, seres de sexo indefinido/ alarves, rústicos e proxenetas/ vampiros da manhã que se aproxima.

Ventura lê a realidade e transforma-a concisamente.Como dele já disse Maria Alzira Seixo, numa crítica de 1996, “ o autor capta muito bem atmosferas físicas e intensidades caracteriais; e penso ainda no estudante de Literatura e na sua aprendizagem dos processos de descrição em poesia, da selecção de materiais e da relação sujeito/objecto, ao ler poemas como este, “Uma Rua de Olhão”:
Uma mulher espreitando num postigo;
um carro velho abandonado
um cão vadio na esquina,
uma linha de sombra
casas, açoteias e mirantes, 
calor e estagnação 
deste Sul luminoso e inóspito. (de A Cidade Das Palavras). 

Na verdade, assim é. Ventura capta estes golpes de realidade com o mais fino bisturi poético. Há aqui alguma coisa de Cesário Verde, também a lançar ao papel os seus alexandrinos exactos; qualquer coisa de cinematográfico na escolha dos planos; qualquer coisa de mole e nostálgico, que poderia ser Macondo a horas de calor. E na Épica Menor tudo volta a lá estar. Poemas que são quadros, poemas que são pequenos nacos de sonho, poemas que são fotografias redivivas. E pessoas. E saudades. E as palavras. Repito-o, as exactas e as necessárias. Não há gordura entre as imagens. Como matemático, Ventura sabe-o claramente: só o indispensável figura. O resto seria maculatório, por desnecessário.  
Leia-se um dos momentos altos deste livro: Memória de um Verão (pág. 33). E comprove-se esse rigoroso exercício do uso da palavra. Ou todo o capítulo dedicado ao Palácio de Estoi, que, sem o ser, é uma visita guiada à alma da casa. Uma visita sem concessões, sem folclore, sem outra coisa que não a mais pura das poesias.
E ao longo da poética de Ventura, por toda esta Épica Menor, não obstante a linguagem depurada e limpa, as imagens são poderosas. E correm nelas as vozes de Egito Gonçalves, de José Gomes Ferreira, de Eugénio de Andrade; mas também as de Paul Célan, de Holderlinn e de Júdice. “Sou um arqueiro de um exército em fuga./Passei fome e frio nas estantes da biblioteca/ ferido pelas palavras refugiei-me no litoral”(pág. 21). Como não recordar Mathias Fergusson e o seu regimento? E quando nos descreve o seu Jardim, os capitéis das colunas, a sombra ausente, os carneiros que pastam, a aura solene das palmeiras, as delícias da água; como não evocaremos o poema “A Música” de Eugénio de Andrade? “Os álamos/ Essa música/ de matutina cal./ Doces vogais/ de sombra e água/ num verão de fulvos/ lentos animais.” 
Ventura contempla e lê a paisagem; e escreve-a. E evoca a cada escrita essa grande corrente da poesia que nele se recolhe, de tantas leituras que a sua sensibilidade apurou. Todo o poeta se move nesta rede intertextual, onde bebe as melhores influências. E só os grandes criadores conseguem bebê-las e delas fruir, ressuscitando-as nos melhores poemas que lavram. 
O livro de Ventura, como dele disse Martim de Sousa Gouveia, tem ainda, nas suas viagens aos lugares e às memórias, “uma profunda pregnância erótica tonalizada disforicamente por um certo desalentamento”. 
Mas preside sempre, nesta poesia, ainda que por si reconheça que “em vão se esforçam os obreiros / as obras já estão feitas e nenhum decreto construirá pirâmides”, preside nela sempre uma clara esperança que vem da luz do lugar em que se habita e se sonha: “Habitamos o lado mais claro do sol” (pág.31); e “a luz que entra pelas janelas/ revela os segredos dos deuses” (pág. 27).
Poesia luminosa, esta.





QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? - 2
Fernando Cabrita

SOLO MEMORIA DE LA VIDA– Emilio Duran

Não sendo propriamente um poeta novo, Emilio Duran é, incontestavelmente, um poeta andaluz deste século e deste tempo. Sevilhano, com o seu primeiro livro -- Paralelo 40 -- editado em 1975 (a que se seguirão outros 12 títulos durante as décadas de 80 e 90), Emilio Duran é o exemplo claro do poeta que projecta, a cada verso, a sua poesia para o futuro. Os seus versos são lúcidos, claros, entranháveis, e mais que tudo, intemporais. Por isso mantem-se rigorosamente actual. Dele e da sua obra disse Antonio Enrique, outro poeta andaluz, granadino, que “Emilio Duran posee una virtud poética esencial: el entusiasmo, entendiendo por tal el amor por todas las cosas. Estamos ante un poeta cronológicamente atípico, un poeta-bisagra, ya que si físicamente pertenece a la década de los sesenta por fecha de nacimiento, literariamente es de la siguiente”.
E eu acrescentaria, a Enrique: Duran literariamente é da geração seguinte; mas sempre e sempre da seguinte, seja qual a que venha. A escrita de Duran é de todos os tempos. Desde logo ágil, fluente; mas rigorosa, séria, fecunda. Às vezes triste, como a vida. Às vezes revolvendo-se no fracasso da existência. Mas também brindando na exultação dos pequenos triunfos, dos amores, das ilusões por vir. E por entre a tristeza e a exultação, nela passa toda a ironia, jogada de cima, como se de algum olimpo, sobre as existências obscuras e tristes. 
Depois Emilio Duran é um poeta sumamente atento. Poesia que é olhar, mas olhar crítico. Nada escapa à sua observação.
Observa. Recolhe. Yo me dedicaba al placer sin nombre de almacenar recuerdos, confessa no poema Desfile. Depois a memória, conservando e enobrecendo o que ficou, transmite essa filtragem de coisas, momentos, pessoas que já não estão, idades que se extinguiram, ternuras, desgostos. E o que resulta são poemas de fina factura. E no seio de tudo, alimentando o poema e alimentando-se dele, um necessário fio de fuga à normalidade, ao cinzento dos dias; um fio de fantasia nova, feita de novas palavras, de novos sentidos. Uma linha mestra de desvario e glória, esse pó das estrelas que penetra cada palavra da carga poética essencial.
O propósito vinha já anunciado, como um lema ou uma consigna para a vida por viver e a escrita por fazer, desde o primeiro momento, no Paralelo 40: “Metamos un injerto de locura /en el tronco gris do lo diário”, anunciava Duran já nesse distante 1975. E acrescentava:
Te regalo rosas rojas.
Igualmente podria regalarte dromedarios,
una foca poliglota o un abeto
fóssil del período cuaternario.
Essa ironia que é a flor da existência, está na obra; e está também no homem. Conheci Emílio Duram na década de 90, era ele um poeta já premiadíssimo e um escritor de primeira água. Recebera, pelos seus livros de poesia, nessa década de 90, prémios literários tão importantes como o Prémio Miguel Hernandez de Poesia (1991), Premio Ponte Zuazo, em 1992, o prestigiadíssimo Premio Leonor de Poesia, em 1994, -- que juntou ao Prémio de Novela Camilo José Cela, também de 94 --, e o Villa Peligros de Poesia, em 1996. Viria ainda a acumular outros prémios, já neste século. A primeira impressão que tive dele foi a de um educado cavalheiro, culto, despretensioso, amante da vida e senhor de uma suprema ironia, que transparecia a cada passo da sua fala. Traduziu particularmente para castelhano o meu Noites de Sevilha, que ia ali ser apresentado; e depois ele mesmo, com Juanjo Perales, fizeram a apresentação desse meu livro no 4 Gats dessa cidade, em 1999.
Dois anos depois fiz questão de trazer a poesia de Emílio Duram ao Algarve. Traduzi alguns dos seus poemas, seleccionando-os de diferentes livros. Numa noite de festa reunimo-nos, amigos e admiradores de cá e de lá, em Olhão, a apreciar a poesia deste autor e a sua capacidade de nos fazer sorrir a cada pensamento grave.
Mesmo agora que a sua visão se deteriora, Emílio mantem essa poderosa força do bom humor, como uma corrente que o liga ao que de mais forte a vida tem. Em Novembro de 2012 fui assistir à apresentação, na Casa Del Libro de Sevilha, da antologia da sua poesia de 1974 a 2010. Com esse sentido gracioso que nos ensina que mesmo as coisas inelutáveis não devem deixar de nos fazer sorrir, Emilio titulou a antologia de Toque de Silencio. E explicou aos ouvintes: ele tinha alguma coisa de militar. E quando o toque de silêncio, no exército, se fazia ouvir, uma densa quietude tomava conta das coisas, e ficava só a memória do dia que passara. Assim fazia ele agora, porque achava que já lhe era penosos continuar a escrever. E deixava este Toque de Silêncio, a encerrar uma obra vasta. “Del mismo modo que el toque que silencia el campamento, cuando el poeta cree haber dicho lo que le agitaba las entrañas, debe sentir la obligación moral de callarse, a menos que tenga el lamentable y senil defecto de repetirse.” Toda uma lição para quem – e tantos são –, arrastando poesias que já foram jovens, hoje as trazem insistentemente, velhas e caducas, a encher escaparates e a diminuir-se no nosso critério.
Na antologia de 2012 estão poemas de todos os seus livros; e um Confiteor, em que o poeta declara, sem rebuço, que os seus poemas foram escritos em “estado de necessidade”; e que a maior parte são gritos de angústia, de amor ou de rebeldia. São-no, na verdade. Mas gritos de poderosa força estética, de intensa poesia. E, em todos, esse inevitável passar do tempo. A vida a escoar-se. As coisas que vivemos a irem-se por obscuras sendas, e delas quedar-se só memória.
Por isso, de entre todos, destaco este seu livro SOLO MEMORIA DE LA VIDA, também agraciado com o Prémio Ciudad del Guadaira em 1996. Ali há, perpassando tudo, a ressonância das lembranças antigas. Lede, por exemplo, o poema Antiguos Alumnos; mas sempre, sobre a memória, o decurso do tempo; e o sentido da perda. Olvidemonos./ Bebed – como hago yo – cada dia su vino./ Fuímos las victimas de un naufragio/ donde nadie se salvó (pág. 13)
Ou: derrotó el tiempo huertas e memorias/Ya no queda nada… (Arroyo de San Juan, pág. 24). Sintomático, sobre os demais: la muerte me recuerda/ su próxima visita./ Tan verde por el césped/ nos va dejando huellas de su paso:/ la derribada hoja,/ el anciano al sol/ esa paloma de quebradas alas,/ mi memoria de un tiempo/ que ya es ceniza… (La Muerte Pasea por El Parque, pág.52). 
Os poemas são em geral curtos, sólidos, crus mesmo, alguns. A concisão é notável; e Duran concilia-a com imagens fortes, surpreendentes, de grande efeito literário e significância poliédrica, à uma estranhas e belas: “hombre herido por el tiempo” (pág.9); “un edén de largas piernas sólidas coronadas por pubis como acantos” (pág. 11), “ me assomé a las hondas avenidas de tus ojos” (pág.19); ”la clara manzanilla de algunas esperanzas” (pág. 22); “tu amor se iba por los apuñalados cerros del ocaso”( (pág. 25); “por las calles, bebiéndome la luz y el aire “( pág.75).
O amor, a perda, a certeza da morte vindoura, o tempo a escorrer entre as mãos. Tudo está, soberbamente está, em alto plano, nesta poesia de Duran, de que este livro é apenas um exemplo. Mas igualmente ali está a raiva (ainda que suavizada pelas blandícias da ironia) que vem da certeza das desigualdades, da pobreza que já aí vinha, galopante, e que o poeta antecipava. E isso também, se tudo o resto já não bastasse, fazem de Durán um poeta novo, hodierno, intemporal.
“Duerme su miséria en la cabina de un cajero automático./ La VISA le outorga/ un préstamo de noches tíbias,/ antes que se congele/ su crédito de hombre” (Mendigo Durmiendo en La Cabina de un Cajero Automático”, pág.39).




QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA?
Fernando Cabrita

ODES – João Bentes

Deixemo-nos de tretas. Não há bons nem maus poetas. Há poetas. E há, de entre eles, os que seguramente passarão altivamente sobre a espuma dos dias, marcando já, com novidade e rigor absolutos, um lugar no futuro. São os grandes poetas.
É o caso de João Bentes.
Não interessa que outras coisas escreveu antes. Não sei se outras coisas escreveu ou irá escrever depois. Mas basta-lhe ter escrito as ODES (Ed. 4águas, 2012) para que se imponha como uma das vozes poéticas mais marcantes deste início de século na nova poesia portuguesa, ao lado dessas outras também recentes vozes, e também intensíssimas, de Ana Marques Gastão, Golgona Anghel, Miguel Godinho, Vasco Gato, Jorge Reis Sá, José Carlos Barros, Margarida Vale de Gato ou Joana Serrado. É toda uma nova geração de poetas já afirmada ou a afirmar-se, a construir uma obra de modernidade e, muito mais do que isso, de intemporalidade.
João Bentes está, assim e com as ODES, neste lugar cimeiro da novíssima poesia portuguesa. Só a absoluta e escandalosa falta de crítica literária em Portugal (onde a crítica se substituiu pela palmadinha nas costas) faz com que obras e autores como estes estejam contudo quase que num limbo. Quem hoje escreve e pretende dar a conhecer a sua obra, sente contra si todo o peso dos interesses literários instalados. As editoras editam apenas o que sabem que já vende. Ou, pior do que isso, apenas os poemitos de banqueiros reformados, vedetas de TV ou gente do meio, afilhados e protegidos. As meninas que passam modelos, os arrivistas, os que mostram a cara na TV por interpostos padrinhos, os medíocres, em suma. Há quem diga que essa é uma poesia má. Volto a dizer que não reconheço boa ou má poesia. Reconheço poesia; e esse género de coisa publicada, à vista e por favor, não é poesia. Por favor!
A poesia que nos enobrece, como a de Bentes, vai todavia e felizmente, com denodo, com raiva quase, furando a custo seu lugar, em leituras, em divulgações entre amigos e leitores mais ou menos fiéis, em apresentações em associações e clubes, ou em recitais quase marginais. Corre nas redes sociais, mostra-se nos blogs. Quem pensa que este é o destino da mediocridade, engana-se. Este é o destino que tantas vezes a mediocridade congénita e reinante nos traça; o destino que os vaidosos e petulantes, sapos a incharem como bois, impõem a quem, sem sequer pensar nisso, lhes retira a luz falsa sob a qual se movem a dar-se ares de estrelas. Quem não é poeta do regime, quem não tem amigos a escrever nos jornais da especialidade, quem recusa o destino macrocéfalo de ter que se exilar em Lisboa para poder usufruir de alguma atenção, vê-se marginalizado, empurrado para o esquecimento, omitido. Mas nunca está marginalizado, nem esquecido, nem desconhecido quem produz uma poesia como a de Bentes. Quem produz estas ODES.
As ODES são, para lá de grande poesia, também um manifesto e grito de revolta contra esta situação de discriminação:
E foi preciso morrer-me o pai
Para regressar à seiva do meu ser
Afastar-me lentamente das coisas deste mundo
Até conseguir melhor forma de não querer
Com a frieza de me despojar de todos e de tudo
Para que apenas tenha o que sempre houve antes 
que é esta terra onde vivo e que também é minha
onde recuso a vossa estranha liberdade
levanto forte e alto o duro braço da poesia. (pág. 24)
Porque em boa verdade morremos todos, nesta estranha liberdade, na agonia de ver desprezados os melhores. “A televisão poupa o pensar” como diz Bentes; e nisso não estamos muito distantes do regime que havia antes, “quando aquela coisa dos cravos/ liberalizou o acesso ao ar condicionado”.
As ODES reflectem sobre a democracia que temos, em que “o estado zela pela higiene dos dias” e dos “grandes falos de betão levantados nas cidades”; e sobre a angústia, o sentido de perda e de desorientação desta geração sem futuro visível (e não, não é apenas um futuro económico…), desta prisão concentracionária em que os nossos dias se transformaram.
Mas a revolta das ODES tem em si o poder da ironia, ora cáustica, dura; ora leve, ligeira. E embora plural no título e plural na repartição dos poemas, as ODES são, penso-o, um só texto, uma única e poderosa canção de raiva e de esperança. Há em tudo uma unidade, uma hegemonia, uma solicitação de espírito única e singular, em que toda a dispersão vem cimentada na palavra intensissimamente poética. 
É um livro sem concessões à vulgaridade, nem ao facilitismo. Mesmo o que se consideraria palavrão solto, obscenidade que chocasse ainda todo o bom leitor politicamente correcto e liberal q.b, (e as ODES começam, de modo tão livre, proclamando que se fodam/ párias protocolos/ papagaios de sala/ gente muito aprendida/ putas frágeis a envelhecer), são profundos e necessários golpes de alma da novíssima poesia que ali transpira. Tão diferente, esta forma expressiva de Bentes, do recurso fácil e bacoco com que tantos supostos poetas -- a passar-se por “escritores malditos”-- aparecem a bolsar sinonímia alarve e obscena. Lançam, esses, mão abundante destes bordões estafados, que apenas são, nos seus casos, falsas mostras de “liberdade” do artista que se supõem; expressões paremptósicas de palavreado, já não de letras, inúteis no contexto, desgarradas, a ressumar insinceridade, despropósito, inoportunidade.
Não com Bentes.
É que as ODES, se bem que singulares e de uma originalidade patente, são filhas lídimas da poesia da Beat Generation. Não sei, nem me interessa, se João Bentes leu Gregory Corso, Kerouac, Ginsberg ou Ferlinghetti. Lendo-os ou não, eles estão todos lá, na sua poesia. Há uma linha de darwinismo literário que una a poesia à poesia, e que vem descendo, imemorial, dos aedos aos nossos dias. O Canto a Mim Mesmo de Withman, que perpassou, suavizado pelo renascentismo redivivo e sublimado de Pound nos Cantos, e depois se reacendeu em William Carlos William e depois em Allen Ginsberg, Peter Orloovsky, Gary Snyder e outros, continua, desaguando e mantendo-se corrente de um rio poderoso, nestas ODES. Ler o poema que começa ( pág.20) vim atado à minha mãe com meias voltas no cabeço, é sentir de novo aquele vendaval de força que nos invadia quando líamos, sempre em voz alta, “ I saw the best minds of my generation destroyed by madness, starving hysterical, naked,…” de Ginsberg; ou I opened this poem with a yawn thinking how tired I am of revolution de Anne Wldmam; ou, por todos, a Autobiografia de Lawrence Ferlinghetti A vida que levo è muito sossegada, passo os dias no café do Mike….
Correm aqui as memórias de FranK O’Hara na sua Autobiographia Literaria ou de Harold Norse no I Have Seen the Ligth and i ths is My Mind.
Mas há também ali todo o reflexo da grande poesia portuguesa de XIX/XX, da mais triste e da mais contida. Sombras de António Nobre no SÓ, rumores da Clepsidra e do Livro de Cesário Verde, e sempre as grandes Odes de Pessoa, no seu Álvaro de Campos. Ouve-se ali ainda o eco de Ruy Belo, a voz de Natália Correia em algumas das suas composições, sonoridades de Cesariny, ou de Nuno Júdice ao tempo da Crítica Doméstica dos Paralelepípedos e da Noção do Poema,
E depois Bentes consegue mostrar-nos, a cada poema das ODES ,aquilo que constituía a poesia na sua essência e na sua primeva origem: a conjugação dos saberes do mundo, a geografia, a história, a observação da sociedade, o conhecimento pela experiencia da de rerum natura. Experiência que se consegue arduamente; mas como escreveu Porfírio Optaciano, as musas árduas compõem felizes poemas.
Com esta ancestralidade difusa no seu seio, as ODES tinham que ser o que são. Um grande livro. Um livro de desencanto que é ao mesmo tempo de esperança. Um livro de uma nova geração, em contraponto com a geração anterior, gente de regime, acomodada e petulante, embaciada nas suas grandezas tristes e mesquinhas. Creio que foi Bentes quem disse, num poema que lhe li algures ou na Sulscrito em que figurávamos ambos ou em algum blog, e com acertada finura, que “mudam-se os tempos mudam-se as verdades muda-se o poder muda-se a sentença toda a história é feita de mudança trazendo sempre novas iniquidades…”

Portanto, meus amigos, não percam tempo com coisas menores. Deixem-se de tretas. Leiam João Bentes. É do melhor que anda por aí.

E se à geração dos novos poetas, como Bentes, posso permitir-me a sobranceria de presumir um conselho, apenas me ocorre um, deixado por Ezra Pund: “os ricos têm mordomos, mas não têm amigos. Nós temos amigos, e não temos mordomos”.